segunda-feira, 2 de junho de 2008

Contos de um minuto, á maneira de István Örkény

(Alguns dos contos do Bernardo:)


O
titulo não é tudo

Encontro-me no supermercado rodeado de produtos onde apenas uma pequena brecha deixava ver o seu interior e aspecto, o resto são apenas slogans apetecíveis. Decidi comprar todos os produtos e colocá-los à prova. Comprei pasta de dentes, cd’s, livros, escovas, máquinas com diferentes funções, desodorizantes, seriais, comida enlatada, todos os tipos de pão e apenas me sentia realizado com letras e nunca com rótulos discretos, esbranquiçados e de óptimo aspecto interior.

Enquanto esperava na fila deparei-me no chão a ler um tal Memorial do Convento, passaram duas horas e a fila tinha apenas avançado um pouco e eram mais berros e desesperos suados do que propriamente contentamento por estar a desperdiçar as horas livres do fim de semana inerte e inútil.

Quando concluí o livro, passadas sensivelmente seis horas, chegou a minha vez... Decidi então arrumar todos os produtos e promoções marcantes, apercebo-me que na vida tudo é mais do que um mero resumo empobrecido.

Cedo o meu lugar e volto a secção esbranquiçada.

Pressentimentos

Acordei num dia primaveril e senti que algo de bom se ia suceder. Arranjei-me, maquilhei-me, tudo o que uma mulher na casa dos trinta tem direito quando sente a sua beleza desvanecendo.

Tomei o pequeno-almoço, sorri apenas por ser Sábado e desloquei-me para um passeio até ao jardim perto de minha casa. Estendi a manta e dei início à minha “leitura das dez horas”. Fazia um sol tranquilo, porém um homem interpôs-se como mais uma árvore que protegiam as delicadas flores do jardim.

Conversou comigo, fez-me sentir o porquê daquele bom pressentimento. Elogiou-me e convidou-me para jantarmos.

Hoje encontro-me num sótão fechado há vários dias, vejo apenas os tímidos raios e as árvores de outro ângulo. Ele trancou-me e usa-me como quer. Não quero morrer solteira, por isso sorrio sempre que ele vem abusar ou bater-me, pois ainda tenho o pressentimento que algo de bom vai acontecer.

Uma noite perdida

Todos os dias, ao fim do trabalho, encontro-me no mesmo pub com as minhas amigas. Ficamos lá até por volta das dez da noite. Foram assim passando os anos, depois do trabalho, ida ao pub com as amigas. No princípio era apenas com as amigas, depois foi o álcool e ali me encontrava sozinha, bêbada a ser expulsa todas as noites pelo patrão.

Todos os dias via-o, estava sentada a dez metro da minha mesa a olhar para mim. Por vezes ia sozinho e sei que era para me ver, tal como eu que apenas bebia 5 wiskeys para me distrair e na esperança de perder o medo e chegar-me até ele. Por vezes éramos os últimos do bar, mas nunca saíamos juntos ou tínhamos amigos em comum. Uma vez levantei-me e ele levantou-se, aproximámo-nos a 8 metros, mas ambos nos sentámos logo de seguida.

O nosso amor apenas resulta a dez metros.

Os anormais

Nasci como qualquer criança normal neste mundo, deficiente, até um pouco sobre dotada, visto que os médicos descobriram que aos cinco anos utilizava 3% do meu cérebro. Ainda me lembro vagamente da minha mãe coxa e de braços e mãos pequenas abraçada a mim e o meu pequeno pai de cinquenta e sete centímetros sorrindo pela novidade. Frequentei a escola onde pude aprender a pintar e a relacionar-me com outros deficientes. Lá conhecia o João, o meu melhor amigo, cego e sem a mão esquerda e a Francisca, uma rapariga deslumbrante, paraplégica e sem o braço direito. Foi por quem eu me apaixonei e ao fim de quinze anos de namoro, casei e tivemos um filho. Infelizmente ele nasceu normal, saudável a nível físico e mental, porém com grande força ultrapassamos cada dias as barreiras que se vão impondo pois o instinto de pais é mais forte do que qualquer normalidade. Apesar de alguns colegas gozarem com o Rodrigo, ele foi bem recebido e nós amamo-lo como se fosse anormal como quase todas as crianças no mundo.

Toalha de mesa

Nasci na toalha de mesa, uma rápida improvisação caseira dos médicos para o meu súbdito parto. Comi a minha primeira refeição na toalha de mesa. Já estudei múltiplas vezes na toalha de mesa. Já jantei com muitos amigos na toalha de mesa e até namoradas na toalha de mesa. A toalha de mesa já fez de toalha e de forro para o sofá. Pedi a minha mulher em casamento na toalha de mesa e de seguida perdi a virgindade na toalha de mesa. Fizemos o no primeiro e segundo filho na toalha de mesa depois de um jantar romântico. Jantei em cima da toalha de mesa no primeiro dia da nova casa, chorei pela morte dos meus avós e ri pelo nascimento dos nossos dois filhos. Com ela me enforco hoje, no dia 28 de Abril de 2008, onde futuramente a minha ex-mulher quando vier buscar as últimas malas e os papeis do divórcio assinados, irá chorar na toalha de mesa que me matou...

Desespero

Estava um pouco cansado, depois de um longo dia de trabalho árduo e decidi entrar no bar mais próximo. Percorri apenas alguns metros de escuridão até encontrar uma placa em néon. Entrei e pedi um copo de wiskey. Enquanto os problemas eram esquecidos em cada golo, entra uma mulher que se senta ao meu lado. Vem com a pintura borrada e desabafa a sua história.

Fala-me que ainda hoje se tentou suicidar. Atirou-se da ponte mas sem sucesso, apenas consegui arranjar alguns hematomas. Fala-me que tentou afogar-se a semana passada, mas a água tinha sido corta nesse mesmo dia. Conta-me que tentou ingerir comprimidos, no entanto tivera uma gastroenterite e nem teve tempo de ingerir mais do que uma caixa.

Sentada no bar, morreu de coma alcoólico.



Bernardo, 12º J

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