domingo, 25 de novembro de 2007

LARGO DE S. CARLOS


A porta que dava acesso ao prédio é agora uma fotografia em tamanho natural.


"Concretizo mais, agora comigo. Nunca senti saudades da infância; nunca senti, em verdade, saudades de nada. [...] O mais são atitudes literárias, sentidas intensamente por instinto dramático, quer as assine Álvaro de Campos quer as assine Fernando Pessoa. São suficientemente representadas, no tom e na verdade, por aquele meu poema que começa: “O sino da minha aldeia...”. O sino da minha aldeia, Gaspar Simões, é o da Igreja dos Mártires, ali no Chiado. A aldeia em que nasci foi o Largo de S. Carlos, hoje do Directório "(Obras em prosa, p. 65).

Carta a João Gaspar Simões (11-12-1931)


“A aldeia em que eu nasci foi o Largo de São Carlos, hoje do Directório, e a casa onde nasci foi aquela onde mais tarde (no segundo andar; eu nasci no quarto) haveria de instalar-se o Directório Republicano.

(Nota: a casa estava condenada a ser célebre, mas oxalá o quarto andar dê mais resultado que o segundo).” Carta a João Gaspar Simões, de onze de Dezembro de 1931.


O Teatro Nacional de S. Carlos é um edifício de arquitectura neoclássica, inspirado no modelo dos teatros italianos. No seu interior, encontra-se uma sala com cinco ordens de camarotes e um salão nobre ao melhor estilo rococó. O acesso faz-se através de uma escadaria de singular pujança decorativa. O Pai de F Pessoa foi crítico musical.

O maestro sacode a batuta,
A lânguida e triste a música rompe ...

Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ...

Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo. e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos ...

Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...

F Pessoa, 1913



Bernardo lê:

O segundo momento do percurso pela primeira infância de Pessoa leva-nos ao Largo de S. Carlos. Foi aqui, no prédio defronte do Teatro Nacional de São Carlos, que o poeta nasceu. “A aldeia em que nasci foi o Largo de S. Carlos”.

Ó sino da minha aldeia
Dolente na tarde calma
Cada tua badalada
Soa dentro de minh'alma
e é tão lento o teu soar
Tão como triste da vida
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida

Por mais que me tanjas perto
Quando passo sempre errante
És para mim como um sonho
Soas-me na alma distante
A cada pancada tua
Vibrante no céu aberto
Sinto mais longe o passado
Sinto a saudade mais perto

Fernando Pessoa

Foi aqui, no nº 4, 4º esq, que nasceu:

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