A professora Cesaltina, de História da Cultura e das Artes
ULISSESO mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo
O corpo morto de Deus,Vivo e desnudo. Este, que aqui aportou,
por não ser existindo.Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou. Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade.
E a fecundá-la decorre.
Embaixo, a vida, metade
De nada, morre.
Mensagem, Fernando Pessoa
D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL
Louco, sim, louco, porque quis grandeza/Qual a Sorte a não dá.Não coube em mim minha certeza;/Por isso onde o areal está/Ficou o meu ser que houve, não o que há. Minha loucura, outros que me a tomem/Com o que nela ia.Sem a loucura que é o homem/Mais que a besta sadia,/Cadáver adiado que procria?
Mensagem, Fernando Pessoa
"Nós outros sem a vista alevantarmos Nem a mãe, nem a esposa, neste estado, Por nos não magoarmos, ou mudarmos Do propósito firme começado, Determinei de assim nos embarcarmos Sem o despedimento costumado, Que, posto que é de amor usança boa, A quem se aparta, ou fica, mais magoa. 94 - ( O velho do Restelo ) "Mas um velho d'aspeito venerando, Que ficava nas praias, entre a gente, Postos em nós os olhos, meneando Três vezes a cabeça, descontente, A voz pesada um pouco alevantando, Que nós no mar ouvimos claramente, C'um saber só de experiências feito, Tais palavras tirou do experto peito: 95 —"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça Desta vaidade, a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça C'uma aura popular, que honra se chama! Que castigo tamanho e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles experimentas!
Os Lusíadas, Luís de Camões
«O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da Outra Banda são de uma Suíça achatada. Sai um navio pequeno - vapor de carga preto - dos lados do Poço do Bispo para a barra que não vejo. Que os Deuses todos me conservem, até à hora em que cesse este meu aspecto de mim, a noção clara e solar da realidade externa, o instinto da minha inimportância, o conforto de ser pequeno e de poder pensar em ser feliz.»
(Livro do Desassossego: Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa / Fernando Pessoa)
(...) Ah, todo o cais é uma saudade de pedra! E quando o navio larga do cais E se repara de repente que se abriu um espaço Entre o cais e o navio, Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente, Uma névoa de sentimentos de tristeza Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas Como a primeira janela onde a madrugada bate, E me envolve como uma recordação duma outra pessoa Que fosse misteriosamente minha. (...) -
(...) Ah, todo o cais é uma saudade de pedra! E quando o navio larga do cais E se repara de repente que se abriu um espaço Entre o cais e o navio, Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente, Uma névoa de sentimentos de tristeza Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas Como a primeira janela onde a madrugada bate, E me envolve como uma recordação duma outra pessoa Que fosse misteriosamente minha. (...) -
Álvaro de Campos – Ode Marítima (Orpheu, 1915)
(...) Ah, todo o cais é uma saudade de pedra! E quando o navio larga do cais E se repara de repente que se abriu um espaço Entre o cais e o navio, Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente, Uma névoa de sentimentos de tristeza Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas Como a primeira janela onde a madrugada bate, E me envolve como uma recordação duma outra pessoa Que fosse misteriosamente minha. (...) - Álvaro de Campos – Ode Marítima (Orpheu, 1915) «O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da Outra Banda são de uma Suíça achatada. Sai um navio pequeno - vapor de carga preto - dos lados do Poço do Bispo para a barra que não vejo. Que os Deuses todos me conservem, até à hora em que cesse este meu aspecto de mim, a noção clara e solar da realidade externa, o instinto da minha inimportância, o conforto de ser pequeno e de poder pensar em ser feliz.»
(Livro do Desassossego: Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa / Fernando Pessoa)
O mostrengo que está no fim do mar/Na noite de breu ergueu-se a voar;/À roda da nau voou três vezes,/três vezes a chiar,/ E disse: «Quem é que ousou entrar/Nas minhas cavernas que não desvendo,/Meus tectos negros do fim do mundo?»/E o homem do leme disse, tremendo:/ «El-Rei D. João Segundo!»/«De quem são as velas onde me roço?/De quem as quilhas que vejo e ouço?»/Disse o mostrengo, e rodou três vezes,/ Três vezes rodou imundo e grosso./«Quem vem poder o que só eu posso,/Que moro onde nunca ninguém me visse/E escorro os medos do mar sem fundo?» E o homem do leme tremeu, e disse:/«El-Rei D. João Segundo!»/Três vezes do leme as mãos ergueu,/Três vezes ao leme as reprendeu, E disse no fim de tremer três vezes:/«Aqui ao leme sou mais do que eu:/Sou um povo que quer o mar que é teu;/E mais que o mostrengo, que me a alma teme/ E roda nas trevas do fim do mundo,/Manda a vontade, que me ata ao leme,/El-Rei D. João Segundo!» Fernando Pessoa in Mensagem Tão grande era de membros, que bem posso/Certificar-te que este era o /Rodes estranhíssimo Colosso,/um dos sete milagres foi do mundo./Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,/Que pareceu sair do mar profundo./Arrepiam-se as carnes e o cabelo,/A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!/
41«E disse: "Ó gente ousada, mais que quantas/No mundo cometeram grandes cousas,/Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,/E por trabalhos vãos nunca repousas,/Pois os vedados términos quebrantas/E navegar meus longos mares ousas,/Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,/Nunca arados de estranho ou próprio lenho;[…]
«Mais ia por diante o monstro horrendo,/Dizendo nossos Fados, quando, alçado,/Lhe disse eu: "Quem és tu? Que esse estupendo/Corpo, certo, me tem maravilhado!"/A boca e os olhos negros retorcendo/E dando um espantoso e grande brado,/Me respondeu, com voz pesada e amara,/Como quem da pergunta lhe pesara:/
50"Eu sou aquele oculto e grande Cabo/A quem chamais vós outros Tormentório, […] "Oh! Que não sei de nojo como o conte!/Que, crendo ter nos braços quem amava,/Abraçado me achei cum duro monte/De áspero mato e de espessura brava./Estando cum penedo /, junto dum penedo, outro penedo! […] 59"Converte-se-me a carne em terra dura;/Em penedos os ossos se fizeram;/Estes membros, que vês, e esta figura/Por estas longas águas se estenderam./Enfim, minha grandíssima estatura/Neste remoto Cabo converteram/Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,/Me anda Thetis cercando destas águas."
60«Assi contava; e, cum medonho choro,/Súbito de ante os olhos se apartou./Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro/Bramido muito longe o mar soou.[…]
41«E disse: "Ó gente ousada, mais que quantas/No mundo cometeram grandes cousas,/Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,/E por trabalhos vãos nunca repousas,/Pois os vedados términos quebrantas/E navegar meus longos mares ousas,/Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,/Nunca arados de estranho ou próprio lenho;[…]
«Mais ia por diante o monstro horrendo,/Dizendo nossos Fados, quando, alçado,/Lhe disse eu: "Quem és tu? Que esse estupendo/Corpo, certo, me tem maravilhado!"/A boca e os olhos negros retorcendo/E dando um espantoso e grande brado,/Me respondeu, com voz pesada e amara,/Como quem da pergunta lhe pesara:/
50"Eu sou aquele oculto e grande Cabo/A quem chamais vós outros Tormentório, […] "Oh! Que não sei de nojo como o conte!/Que, crendo ter nos braços quem amava,/Abraçado me achei cum duro monte/De áspero mato e de espessura brava./Estando cum penedo /, junto dum penedo, outro penedo! […] 59"Converte-se-me a carne em terra dura;/Em penedos os ossos se fizeram;/Estes membros, que vês, e esta figura/Por estas longas águas se estenderam./Enfim, minha grandíssima estatura/Neste remoto Cabo converteram/Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,/Me anda Thetis cercando destas águas."
60«Assi contava; e, cum medonho choro,/Súbito de ante os olhos se apartou./Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro/Bramido muito longe o mar soou.[…]
Os Lusíadas, de Luís de Camões
Ana lê
[…]
Outra vez te revejo, Cidade da minha infância pavorosamente perdida... Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui... Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei, E aqui tornei a voltar, e a voltar. E aqui de novo tornei a voltar? Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram, Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória, Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim? Outra vez te revejo, Com o coração mais longínquo, a alma menos minha. Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -, Transeunte inútil de ti e de mim, Estrangeiro aqui como em toda a parte, Casual na vida como na alma, Fantasma a errar em salas de recordações, Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem No castelo maldito de ter que viver...
Lisbon revisited (1926), Álvaro de Campos
Outra vez te revejo, Cidade da minha infância pavorosamente perdida... Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui... Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei, E aqui tornei a voltar, e a voltar. E aqui de novo tornei a voltar? Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram, Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória, Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim? Outra vez te revejo, Com o coração mais longínquo, a alma menos minha. Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -, Transeunte inútil de ti e de mim, Estrangeiro aqui como em toda a parte, Casual na vida como na alma, Fantasma a errar em salas de recordações, Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem No castelo maldito de ter que viver...
Lisbon revisited (1926), Álvaro de Campos
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