quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

A Lisboa de Pessoa, continuação

O Pedro

RUA PRIMEIRO DE DEZEMBRO

“Depois veio a vida. Nessa noite levaram-me a cear ao leão. Tenho ainda a memória dos bifes no paladar da saudade – bifes, sei ou suponho, como hoje ninguém faz ou eu não como. E tudo se me mistura - infância vivida e distância, comida saborosa de noite, cenário lunar, Verlaine futuro e eu presente – numa diagonal difusa, num espaço falso entre o que fui e o que sou.”
Bernardo Soares, Livro do Desassossego (16-10-1931)
O João
RUA NOVA DO ALMADA

Descendo hoje a Rua Nova do Almada, reparei nas costas do homem que a descia adeante de mim. Eram as costas vulgares de um homem qualquer, o casaco de um fato modesto num dorso de transeunte ocasional. Levava uma pasta velha debaixo do braço esquerdo, e punha no chão, no rythmo de andando, um guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva na mão direita.Senti de repente uma coisa parecida com ternura por esse homem. Senti nelle a ternura que se sente pela vulgaridade humana, pelo banal quotidiano do chefe de familia que vae para o trabalho, pelo lar humilde e alegre d'elle, pela inocencia de viver sem analysar, pela naturalidade animal d'aquellas costas vestidas.
Ora as costas d'este homem dormem. Todo elle, que caminha adeante de mim com passada egual à minha, dorme. Vae inconsciente. Vive inconsciente. Dorme, porque todos dormimos. Toda a gente é um sonho. Ninguém sabe o que faz. Dormimos a vida inteira, eternas creanças do Destino. Por isso sinto uma ternura informe e immensa por toda a humanidade infantil, por toda vida social dormente, por todos , por tudo.
Livro do Desassossego - Bernardo Soares


Depois do Teatro,descemos a Rua Garrett e a Rua Nova do Almada. Chegados à Baixa, podemos sentir ainda a cidade de Pessoa. Todos os bancos e sedes de firmas comerciais estavam na Rua da Prata ou na Rua do Ouro. Foi em algumas destas firmas comerciais da Rua da Prata que Fernando Pessoa trabalhou, como correspondente de inglês, pelo seu domínio da língua, raro entre os portugueses daquele tempo. Mas recusou sempre um emprego fixo. Preferia andar de escritório em escritório, livremente, dedicando-se à sua escrita. O Livro do Desassossego e muitos outros textos, foi escrito nos escritórios da Baixa, principalmente no primeiro andar da Ourivesaria Moitinho. Ao almoço, Pessoa atravessava para a Rua dos Douradores, onde situou a vida de um dos seus heterónimos.

O João
ESTAÇÃO DO ROSSIO
O ter deveres, que prolixa coisa! Agora tenho eu que estar à uma menos cinco Na Estação do Rocio, tabuleiro superior — despedida Do amigo que vai no "Sud Express" de toda a gente Para onde toda a gente vai, o Paris... Tenho que lá estar E acreditem, o cansaço antecipado é tão grande Que, se o "Sud Express" soubesse, descarrilava... Brincadeira de crianças? Não, descarrilava a valer... Que leve a minha vida dentro, arre, quando descarrile!... Tenho desejo forte, E o meu desejo, porque é forte, entra na substância do mundo.
Álvaro de Campos



Edgar
ROSSIO
O Rossio. Foi aqui que Pessoa muitas vezes se encontrou com outro poeta, Mário de Sá-Carneiro, com quem manteve profundas trocas intelectuais. Dos cafés do Rossio, por onde Fernando Pessoa andou, já só resta o Nicola, que começou a funcionar em 1929. O poeta passou muito do seu tempo à mesa dos cafés, onde pensou e escreveu grande parte da sua obra literária.

Sobre a Baixa, diz Pessoa-Soares:
“No nevoeiro leve da manhã de meia primavera, a Baixa disperta entorpecida e o sol
nasce como que lento. Há uma alegria socegada no ar com metade de frio, e a vida, ao
sopro leve da brisa que não há, tirita vagamente do frio que já passou [...] Não abriram
ainda as lojas, salvas as leiterias e os cafés, mas o repouso não é de torpor, como o de
domingo; é de repouso apenas. [...] nas poucas janellas abertas, altas, madrugam
também apparecimentos. [...] de minuto a minuto, sensivelmente, as ruas desdesertam-
se. [...] Accordo de mim e, [...] vejo que a nevoa que sahiu de todo do céu [...] me
entrou verdadeiramente para a alma, e ao mesmo tempo entrou para a parte de dentro
de todas as coisas, que é por onde ellas teem contacto com a minha alma....”


Saí de casa cedo. Almocei no Restaurante Pessoa*, mediante empréstimo de João Correia de Oliveira. Depois fui encontrar-me com o Garcia Pulido na Brasileira do Rossio. Falámos até às 2 ½. Devido ao advento de alguns indivíduos proprietários, a conversa, atravessando a lei da contribuição predial, descambou em horrorosamente depressiva.
Página de um diário (27-3-1913) * Rua dos Douradores





David
ROSSIO
Acordar
Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras, Acordar da Rua do Ouro, Acordar do Rocio, às portas dos cafés, Acordar E no meio de tudo a gare, que nunca dorme, Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono. Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar, Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo. À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma, E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo. […}
Álvaro de Campos


[…] Cheguei, num momento feliz de visão etérica, a ver, na Brasileira do Rossio, de manhã as costelas de um indivíduo através do fato e da pele. Isto é que a visão etérica no seu pleno grau. Chegarei eu a tê-la realmente, isto é, mais nítida e sempre que quiser? A ‘visão astral’ está muito imperfeita. Mas às vezes, de noite, fecho os olhos e há uma sucessão de pequenos quadros, muitos rápidos, muito nítidos (tão nítidos como qualquer coisa do mundo exterior). Há figuras estranhas, desenhos, sinais simbólicos, números (também já tenho visto números), etc. E há - o que é uma sensação muito curiosa - por vezes a sentir-me de repente pertença de qualquer outra coisa. O meu braço direito, por exemplo, começa a ser-me levantado no ar sem eu querer. ( É claro que posso resistir, mas o fato é que não o quis levantar nessa ocasião). Outras vezes sou feito cair par um lado, como se estivesse magnetizado, etc.[…]
Carta à tia Anica (Ana Luiza Pinheiro Nogueira 24-06- 1916)


O CASTELO


Ergo a cabeça/ de passeante/ e vejo que, sobre a encosta do Castelo, o poente oposto arde em dezenas de janelas, num reverbero alto de fogo frio. À roda desses olhos de chama dura toda a encosta é suave ao fim do dia. Posso ao menos sentir-me triste e ter a consciência de que , com esta minha tristeza se cruzou agora – visto com ouvido – o som súbito do eléctrico que passa, a voz casual dos conversadores jovens, o sussurro esquecido da cidade viva./ Há muito tempo que não sou eu.
Livro do desassossego (8-1-1931)





Berna
Bernardo
PRAÇA DA FIGUEIRA
RUA DA BETESGA, PRAÇA DA FIGUEIRA
“No escritório do Mayer desde as 15 ½ até às 18 ¼ ou 18 ½. Copiei parte da carta para o Natal. A máquina desarranjou-se. Escrevi bovcados do “Marcos Alves” e do “Filatelista”. Ideei finalmente a personagem do Marcos Alves, “Fixei” o Filatelista também. A “ideação” foi principalmente num pequeno passeio até ao Rossio em que cortei a estadia no escritório.”
Fernando Pessoa (fragmento de um diário, 16-2-1913)
RUAS DOS DOURADORES, BETESGA, PRATA, FANQUEIROS
"Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais - se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida. (...) O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu - alma que sente e pensa, o universo que sou pra mim - sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um 'o que será dele?'. E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas em uma cidade qualquer."
Fernando Pessoa, em O Livro do Desassossego.

"Há sossegos de campo na cidade. Há momentos (...) em que, nesta Lisboa luminosa, o campo, como um vento, nos invade. E aqui mesmo, na Rua dos Douradores, temos o bom sono"
Bernardo Soares



















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