quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Desassossegos de Pessoa

Escola Secundária Artística António Arroio 2007/2008

Disciplina de Português – Maria Teixeira


Desassossegos de Pessoa

Fernando Pessoa e a cidade – ecos dos passos do poeta; transparências do seu olhar


Introdução

Creio que me afastei um pouco do “tema” ao basear o meu trabalho inteiramente numa análise do Livro do Desassossego. Com uma leitura bastante aprofundada do livro fiquei a conhecer melhor Fernando Pessoa, os “seus desassossegos” e a sua visão de Lisboa.

Para a concretização deste trabalho escolhi diversos trechos do livro relacionados com os aspectos que achei mais importantes de salientar. O trabalho vive muito dos textos do livro, sendo estes acompanhados por um comentário pessoal.

No início do trabalho consta ainda uma “introdução” ao livro.

Bibliografia:

Pessoa, Fernando. Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. 1060 ed. Lisboa: Assírio & Alvim, ?.

Introdução ao Livro

O Livro do Desassossego de Fernando Pessoa é uma obra que reúne textos pelo nome do seu “semi-heterónimo” Bernardo Soares.

Projectos da primavera de 1913 já mencionavam o livro como sendo uma obra em prosa. Em Agosto do mesmo ano é publicado na revista A Águia, do Porto, o texto “Na floresta do Alheamento” sob o seu próprio nome e com a indicação “Do Livro do Desassossego, em preparação”. Assim podemos considerar que o livro foi escrito entre 1913 e 1935 (ano da morte do escritor), sendo a sua publicação posterior.

O livro nunca foi, de forma alguma, uma obra organizada. “O meu estado de espírito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer, no Livro do Desassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos.” Diz Pessoa numa carta de 1914 a Armando Cortes-Rodrigues.

Os trechos para o livro eram escritos nos mais variados suportes – papel dos escritórios onde trabalhava ou dos cafés que frequentava, envelopes, folhas soltas, agendas, etc – o que mostra o seu carácter espontâneo, eram escritos em qualquer hora e local. Esta “desarrumação” foi uma espécie de premissa, sem a qual o livro não poderia ser fiel ao seu génio inquieto e agitado.

Os trechos mais antigos têm título, mas a partir de 1915 isto já quase não acontece. Entretanto, o livro foi-se transformando, cada vez mais, num “diário” dominado pelas inquietações intelectuais e emocionais de um homem de quase 30 anos, habituado a «pensar com as emoções e sentir com o pensamento». Mas Pessoa sempre foi conhecido pelos seus heterónimos, pelo que este livro não foi excepção, sendo o livro atribuído a Vicente Guedes, um ajudante de guarda-livros que escrevia nas horas vagas. Guedes surgira antes de 1910 mas a sua caracterização completa só ficou definida por volta de 1915, enquanto “autor” do Livro do Desassossego. Este heterónimo, tal como o seu criador, era solitário, reservado, interiormente aristocrático e invulgarmente lúcido.

A década seguinte ficou marcada pela crise e instabilidade política que se vivia em Portugal. As sucessivas mudanças de governo, as greves e as manifestações, a substítuição da República pela Ditadura... No início desta década, de 1920, o poeta escreveu pouco para o livro, talvez afectado pelos factores mencionados, mas nesse tempo dedicou-se a outras obras.

Em 1928/9 voltou ao livro; podemos considerar este período como uma fase diferente. O carácter do livro mudou porque o seu autor também mudara: Pessoa estava pronto para escrever Pessoa. Ainda recorria a heterónimos mas eram claramente os seus próprios sentimentos, irreprimíveis, que habitavam esta prosa (o mesmo acontece com os poemas de Álvaro de Campos tardio). Nesta altura, Vicente Guedes foi substituído por Bernardo Soares. Este último foi considerado um “semi-heterónimo” porque, segundo Pessoa, era «dotado de uma personalidade não diferente da minha [sua], mas uma simples mutilação dela».

Assim, podemos distinguir em duas fases a obra escrita: a de Guedes (antes de 1920) como sendo mais friamente racional, algo distante do seu próprio mal existencial; e a de Bernardo Soares (1929-1935), sendo este mais emotivo, incapaz de se subtrair à sua angústia profunda. No entanto, é de notar que a autorio de todos os techos foi atribuída a Bernardo Soares, quando o mesmo surgiu, ficando com o “lugar” de Guedes.

Os trechos dos anos de 1930 (quando mais de metade do livro foi escrito) são caracterizados pelo devaneio, mas também pela espantosa franqueza do seu conteúdo. O livro torna-se um verdadeiro diário, não de coisas vistas e feitas mas de coisas pensadas e sentidas.

Com esta obra Pessoa passar para além da literatura: limitava-se a gravar a mente a alma em papel


Pessoa vivia preso nos seus próprios pensamentos, condenado ao tédio e à monotonia que estes lhe causavam. Muitas vezes, o escritor invejava a felicidade banal das pessoas vulgares.

“Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes.” (p. 266)

“Uma coisa só me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez.” (p.164)

“O homem vulgar, por mais dura que lhe seja a vida, tem ao menos a felicidade de não pensar.” (p. 181)

Considerava a pessoa comum, por não pensar.

“Se eu fora outro, penso, este seria para mim um dia feliz pois o sentiria sem pensar nele”.

O seu ser obrigava-o a pensar e a analisar emoções, pormenores, tudo, pelo que não conseguia sentir nada em pelo, nada que não fosse perturbado pelo seu racionalismo.

“Em mim foi sempre menor a intensidade das sensações que intensidade da consciência delas.” (p. 113)

“(...)as coisas mais pequenas têm com facilidade a arte de me torturar (...) Quem, como eu, sobre porque uma nuvem passa diante do sol (...) AS minhas horas mais felizes são aquelas em que não penso nada, não quero nada, não sonho sequer (...)” (p. 367)

Isto levava-o à monotonia, tédio e infelicidade.

“Estou num dia em que me pesa (...)a monotonia de tudo” (p. 165)

“Cheguei aquele ponto em que o tédio é uma pessoa, a ficção encarnada no meu convívio comigo.” (p. 313)

O livro, no entanto, não é uma obra deprimente de lamentos de certo escritor. Apesar de (na minha opinião) conter um excesso de devaneios sobre a monotonia e o tédio, isto apenas representa a contínua batalha de auto-descoberta que o autor travava consigo mesmo.

Existem textos que me esboçam um sorriso na cara pelas suas descrições harmoniosas e que ao mesmo tempo têm um lado complexo que me faz pensar.

“Não é nos largos campos ou nos jardins grandes que vejo chegar a primavera. É nas poucas árvores pobres de um largo pequeno da cidade. Ali a verdura destaca como uma dádiva e é alegre como uma boa tristeza.
Amo esses largos solitários, intercalados entre ruas de pouco trânsito, e eles mesmos sem mais trânsito que as ruas. São clareiras inúteis, coisas que esperam, entre tumultos longínquos. São de aldeia na cidade.
Passo por eles, subo qualquer das ruas afluentes, depois desço de novo essa rua, para a ele(s) regressar. Visto do outro lado é diferente, mas a mesma paz deixa dourar de saudade súbita - sol no ocaso - o lado que não vira na ida.
Tudo é inútil, e eu o sinto como tal. Quanto vivi se me esqueceu como se o ouvira distraído. Quanto serei não me lembra como se o tivera vivido e esquecido.
Um ocaso de mágoa leve paira vago em meu torno. Tudo esfria, não porque esfrie, mas porque entrei numa rua estreita e o largo cessou.” (p. 293)

“Vou num carro eléctrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para mim os pormenores são coisas, vozes, letras. [...]Entonteço. Os bancos do eléctrico, de um entretecido de palha forte e pequena, levam-me a regiões distantes, multiplicam-se-me em indústrias, operários, casas de operários, vidas, realidades, tudo. Saio do carro exausto e sonâmbulo. Vivi a vida inteira.” (p. 255)

Estes exemplos que dei reflectem a vida citadina de Pessoa em Lisboa e no último, apercebemo-nos ainda, da sua constante observação de pormenores e de características humanas.

Fernando Pessoa gostava de Lisboa, considerando-a como a sua grande influência literária, sentro outra Cesário Verde.

“Penso, muitas vezes, em como eu serie se (...) nunca houvesse sido trazido (...) para um escritório de Lisboa(...).

(...) a que informações literárias estava grata a formação do meu espírito, abriria o espaço ponteado, em letras magnas o endereço chave LISBOA.” (p. 137)

Vagueava pela cidade captando o seu espírito. A sua vida concentrava-se na Baixa e gostava de ir ver o Tejo. Tal como Cesário Verde, captava as sensações através dos sentidos: a visão, a audição e o olfacto.

“O olfacto é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente.” (p.238)

Frequentava os cafés (como A Brasileira, o Nicola, e o Martinho da Arcada), onde escrevia muitas das suas obras. Nestes locais havia, também, tertúlias que reuniam escritores, artistas, filósofos, etc.

“Do terraço deste café olho tremulamente para a vida.”

Lisboa era realmente a cidade que Pessoa gostava de habitar, com a leitura da obra, apercebi-me também que Pessoa era um homem que não gostava de correr riscos e era bastante ligado aos seus locais habituais.

“Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos perigos” (p. 96)

“Entrei, no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenha estado.” (p. 378)

Num dos seus textos, Bernardo Soares (que trabalhava na Rua dos Douradores) imaginava como seria se finalmente ficasse liberto do seu trabalho. No entanto, rapidamente se apercebe que teria pena, pois teria sentiria saudade (p.44). Incomodava portanto a Pessoa, o conceito de tempo, de como com o passar deste perdia as coisas que passavam com ele.

“Sinto o tempo como uma dor enorme. É sempre com uma comoção exagerada que abandono qualquer coisa. O pobre quarto alugado onde passei uns meses, a mesa do hotel de província onde passei sete dias, a própria triste sala de espera do comboio(...)” (p. 187)

O livro fala também da maneira de escrever de Pessoa; quando diz que prefere a prosa ao verso, não sei se fala como Bernardo Soares, ou se isso corresponde mesmo à sua pessoa.

“Prefiro a prosa ao verso, como modo de arte, por duas razões, das quais a primeira é minha é que não tenho escolha, pois sou incapaz de escrever em verso(...) Considero o verso como uma coisa intermédia, uma passagem da música para a prosa. Como a músico, o verso é limitado por leis rítmicas, que, ainda que não sejam as leis rígidas do verso regular, existem todavia como resguardar, coacções, dispositivos automáticos de opressão e castigo. Na prosa falamos livres. Podemos incluir ritmos musicais e contudo pensar. Podemos incluir ritmos poéticos, e contudo estar fora deles. Um ritmo ocasional de prosa faz tropeçar o verso.” (p. 209)

Descreve, noutro texto, a forma de prosa que usa.

“Tive, como muitos têm tido, a vontade pervertida de querer
ter um sistema e uma norma. E certo que escrevi antes da norma e do sistema; nisso, porém, não sou diferente dos outros.
Analisando-me à tarde, descubro que o meu sistema de estilo assenta em dois princípios, e imediatamente, e à boa maneira dos bons clássicos, erijo esses dois princípios em fundamentos gerais de todo estilo: dizer o que se sente exactamente como se sente - claramente, se é claro; obscuramente, se é obscuro; confusamente, se é confuso -; compreender que a gramática é um instrumento, e não uma lei.

Suponhamos que vejo diante de nós uma rapariga de modos masculinos. Um
ente humano vulgar dirá dela, "Aquela rapariga parece um rapaz". Um outro ente humano vulgar, já mais próximo da consciência de que falar é dizer, dirá dela, "Aquela rapariga é um rapaz". Outro ainda, igualmente consciente dos deveres da expressão, mas mais animado do afecto pela concisão, que é a luxúria do pensamento, dirá dela, "Aquele rapaz". Eu direi, "Aquela rapaz", violando a mais elementar das regras da gramática, que manda que haja concordância de género, como de número, entre a voz substantiva e a adjectiva. E terei dito bem; terei falado em absoluto, fotograficamente, fora da chateza, da norma, e da quotidianidade. Não terei falado: terei dito.” (p. 103)

Por fim devemos ainda citar a sua célebre frase. Que demonstra a maneira como Pessoa “ultrapassou” a literatura.

“Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo.” (p. 353)

No entanto, vemos também o “desespero” de não conseguir criar obras completas.

“Fazer uma coisa completa causa-me, talvez, mais inveja do que outro qualquer sentimento. É como um filho: é imperfeita como todo o ente humano, mas é nossa como os filhos são.

E eu, cujo espírito de crítica própria me não permite senão que veja os defeitos, as falhas, eu, que não ouso escrever mais que trechos, bocados, excertos do inexistente, eu mesmo, no pouco que escrevo, sou imperfeito também. Mais valeram pois, ou a obra completa, ainda que má, que em todo o caso é obra; ou a ausência de palavras, o silêncio inteiro da alma que se reconhece incapaz de agir.” (p. 105)

Pessoa gosta de reflectir sobre a maneira comos os outro o vêem.

"Muitas vezes para me entreter - porque nada entretém como as ciências, ou as coisas com jeito de ciências, usadas futilmente - ponho-me escrupulosamente a estudar o meu psiquismo através da forma como o encaram os outros. Raras vezes é triste o prazer, por vezes doloroso, que esta táctica fútil me causa.
Geralmente, procuro estudar a impressão geral que causo nos outros, tirando conclusões. Em geral sou uma criatura com quem os outros simpatizam, com quem simpatizam, mesmo, com um vago e curioso respeito. Mas nenhuma simpatia violenta desperto. Ninguém será nunca comovidamente meu amigo. Por isso tantos me podem respeitar." (p. 98)

“Sempre me tem preocupado, naquelas horas ocasionais de desprendimento em que tomamos consciência de nós mesmos como indivíduos que somos outros para os outros, a imaginação da figura que farei fisicamente, e até moralmente, para aqueles que me contemplam e me falam, ou todos os dias ou por acaso.” (p. 284)

Fernando Pessoa não se achava compreendido mas acreditava que no futuro o seria.

“Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. E o que escrever isso será, na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós que já morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver.” (p. 182)

Ao passear por entre os textos consegui relacionar trechos com acontecimentos. Dou o exemplo do diálogo imaginário entre duas pessoas num café, que Pessoa escreve. Aí faz referência ao suicídio do seu amigo Mário de Sá-Carneiro (também poeta e prosador), apesar de não citar o seu nome.

“Ele pretendia descobrir e fixar o modelo de não completas a frases sem parecer fazê-lo. Ele costumava dizer-me que procurava o micróbio da significação.. suicidou-se, é claro, porque um dia reparou na responsabilidade imensa que tomara em si...” (p. 304)

“Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.”

(p.48)

Concluo assim a minha análise da obra, apesar de haver sempre muito mais por desvendar.

Maria Teixeira

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