segunda-feira, 3 de março de 2008

Comentário à peça “Do Desassossego”

Comentário à peça “Do Desassossego”

Ao entrar-se na Comuna, consegue-se logo recuar uns anos e sentirmo-nos num retiro intelectual, onde os artistas se podiam confortavelmente encontrar para momentos de camaradagem.

A verdade é que é um teatro com a magia da genialidade, com poucos recursos. A meu ver, transmite um ambiente muito mais fiel ao teatro e à sua arte. Torna-o mais pessoal, próximo do público, sem rodeios e entretenimentos que tentam falsamente glorificar.

Os actores, tão próximos de nós público, fazem-nos logo sentir mesmo a seu lado. Um espectador dentro do acontecimento. Fernando Pessoas escrevia, introduzia-nos ao seu heterónimo, quando uma voz surgiu mais forte e com um novo foco – Bernardo Soares.

Um homem um pouco curvado, de meia-idade, mas sem dúvida com algo que o desbanalizava, a sua logo patente lucidez e discurso. No início do seu monólogo (que é como quem diz, no início do nosso conhecimento dele) deixa-nos presente a forma a que reduz a sua vida, o seu desencanto e monotonia, a sua vida era logo resumida à rua dos Douradores. Mas ao falar do patrão Vasques, algo de imponente sobressaía, como se tivesse um lado humilde, modesto, mas que, mais uma vez, com o seu discurso, era elevado relativamente ao que era caracterizado.

De carácter solitário, mas atento e astucioso.

A noite.

A noite, o momento de vermos a sua verdadeira essência, o seu eu real!

Provavelmente foi a cena mais desconcertante e tocante de toda a peça, quando estava na cama. “O meu amor pequenino”. O efeito da sequência feita com a voz de Soares e de Pessoa aproximava o criador à criação, vibrava dentro de nós. Remete-nos ao passado, à sua infância, ao desencadear de toda a sua personalidade. Mostra-se frágil, como a criança “abandonada”, órfã que foi. A falta de afecto que teve, a frieza, a solidão.

É como a explicação psicológica de si. O trauma da sua infância que o obrigou a ser de tal maneira. Achei de facto genial a representação da cena, tão real… O conhecimento de Pessoa era tão vasto, criou uma personagem com acções típicas de qualquer ser com aquela infância. Que aquando do momento íntimo e à vontade, não é mais do que uma pequena criança triste, sozinha. Muito real. E o actor, Carlos Paulo, conseguiu interpretar toda a essência de uma pessoa marcada, tocando mesmo. Foi um momento perturbante, essa análise psicológica.

No entanto tenho de referir um facto. A personagem era demasiado consciente do seu “trauma”. Isto é, ao longo do monólogo fala abertamente, como que explicando o que o levou a ser assim. E em certas partes torna-se irreal e é uma pequena quebra, pois ninguém tem tanta consciência de si, não a esses níveis. É certo que se não falasse assim, era difícil para o leitor e espectador interpretarem-no rapidamente. Mas não bate certo.

No momento seguinte, de entretenimento através das “piadas sexuais”, que nos fizeram, a nós público, descontrair um pouco, evidencia que “um homem superior não precisa de mulher”, elevando-se do homem comum.

O espelho aberto como “duo” de homem e mulher, foi muito bem conseguido, os dois lados, e o simultâneo.

A noite tormentosa e tumultuosa revelou Bernardo Soares, um homem perturbado, desassossegado devido ao seu ser, e com as acções dos outros. Mas extremamente consciente de si e do próximo, analisando ambos.

Um aplauso à companhia, e um ainda mais forte aplauso a Carlos Paulo, à sua mestria como actor e como personagem.

1 de Março de 2008

Marta Romão nº19 – 12ºJ

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